Escravos na Justiça
Entre as várias preciosidades do Arquivo
Nacional do Rio estão as Ações de Liberdade. Fui passar uma tarde, na última
terça-feira, com esses processos que escravos moveram contra seus
proprietários. Na comunidade do Desterro, hoje Florianópolis, em 1813, uma
mulher de nome Liberata iniciou uma ação contra José Rebello, seu dono, que a
violentava sistematicamente desde os 10 anos.
Depois de muitos anos, idas e vindas, brigas e
ameaças, ela conseguiu a liberdade. Em 1835 seus filhos José e Joaquina
entraram também na Justiça, alegando que tinham nascido depois que Liberata foi
libertada, portanto, eram livres, e que tinham sido escravizados ilegalmente.
Eles também venceram.
No Arquivo, eu manuseei com luvas e respeito
alguns desses documentos. Hoje estão todos digitalizados, e os pesquisadores
estudam nos arquivos digitais. Mas foram mostrados na reportagem que fiz para o
programa da Globonews.
Quando a historiadora Keila Grinberg, ainda
uma estudante de graduação da Universidade Federal Fluminense, nos final dos
anos 1990, os estudou, eles estavam em caixas. Ela encontrou 400 destas ações que
ocorreram no Brasil todo e que vieram para o Rio para a Corte de Apelação. Essa
história sempre me fascinou desde que li o livro de Keila, em 2001.
Hoje ela é doutora em História Social
pela UFF e tem pós-doutorado em Michigan. Nos Estados
Unidos, descobriu que essas ações de liberdade não foram exclusividade do
Direito brasileiro, ocorreram lá e na América espanhola, mas em muito menor
número do que no Brasil.
A coragem de cada um desses que entraram na
Justiça é impressionante, e a lição que eles deixaram é de que mesmo no mais
injusto do sistema, eles, desprovidos de todos os direitos, decidiram buscar a
Justiça:
— A principal lição que a história da Liberata
demonstra é que os escravos não aceitavam passivamente a escravidão. Isso tem
que estar em todas as escolas: a escravidão nunca foi aceita. Os descendentes
dos escravos precisam saber dessa história, que é de sofrimento, mas de
conquista. Outra lição é que existe uma dimensão da Justiça brasileira pouco
conhecida. Numa sociedade escravocrata e violenta, na Justiça, esse indivíduo
conseguiu ser ouvido.
Liberata
afirmou que foi submetida à violência sexual sistemática e que José Rebello,
seu dono, prometeu que a libertaria quando ela crescesse, mas não cumpriu a
promessa. Em algumas ações, escravos alegaram que juntaram dinheiro necessário
para comprar alforria e os donos elevaram o preço ou ficaram com o dinheiro e
não os libertaram. José e Joaquina disseram que tinham nascido do ventre livre
de Liberata e pediram para o processo da mãe ser anexado aos autos como prova:
— Em geral, na primeira instância, quando o
juiz estava mais submetido ao poder local, os escravos perdiam, mas nos 400
casos que estudei em que se recorreu à Corte no Rio de Janeiro houve mais
vitória dos escravos do que dos senhores.
Amanhã, no 13 de maio, completam-se 125 anos
do fim da escravidão. O que os estudos da Keila e de outros historiadores
contemporâneos mostram é que a luta por liberdade perpassou toda a história da
escravidão no Brasil. Isso não torna o 13 de maio menos significativo, mas ajuda
a refazer a narrativa da aceitação passiva. Os escravizados, africanos ou
brasileiros, lutaram de todas as formas.
Só a partir de 1871, com a Lei do Ventre
Livre, é que oficialmente se pôde comprar a própria liberdade. Mas o hábito de
juntar dinheiro e comprar a alforria — ou seja, a luta no campo da poupança e
das finanças — era usual no Brasil no século XIX.
O livro da Keila “Liberata, a Lei da
Ambiguidade” está, infelizmente, esgotado. Tenho um precioso exemplar que me
foi dado de presente pelo advogado Hédio Silva. Mas a autora disponibilizou seu
conteúdo na internet. Ela mantém também este e outros textos no Blog da Keila:
www.keilagrinberg.blogspot.com.br.
As ações de liberdade são uma das facetas
desta incrível história de luta e superação do mais violento dos sistemas.
Folheei com temor reverencial as velhas páginas de alguns processos, ainda
assombrada com a pergunta para a qual não tenho resposta: qual é o tamanho da
coragem que uma pessoa precisa ter para, em sendo escravo, denunciar na Justiça
os excessos do seu dono e exigir a liberdade?
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